O competente professor de Canto e Regência, doutor em música Ângelo Dias, nosso convidado para mais um apresentação na Penitenciária Odenir Guimarães em Aparecida de Goiânia, compareceu no último sábado e deu um show com o Coral Vozes da Terra para mais de trezentos reeducandos, distribuídos pelas alas “A”, “B” e “C”. O Dia dos Pais não costuma ser lembrado e comemorado no intramuros de uma penitenciária, mas no último sábado presenciamos um espetáculo inesquecível, cheio de emoção e sensibilidade.
Após a apresentação do Coral Vozes da Terra sob a regência do professor Ângelo, pedi-lhe que me enviasse por e-mail algumas informações sobre os temas das músicas, as impressões do pessoal no ambiente prisional e outras informações que julgasse importantes.
O texto com o título Música, Liberdade e Consolação enviado pelo professor Ângelo Dias foi mais uma agradável surpresa. Primeiro o show de Canto Coral no intramuros da Penitenciária Odenir Guimarães, um espetáculo para sempre ser lembrado. Ouvimos o maravilhoso “Pai Nosso do Padre Zezinho”, a “Ave-Maria” e a música Esperança ditadas mediunicamente pelo Espírito Rogério e tantas outras belíssimas páginas musicais. O mestre do Canto e Regência, mesmo atento ao seu mister na regência do Coral Vozes da Terra, nada deixou escapar do que percebeu num simples golpe de vista por onde passava.
A paisagem descrita no texto enviado pelo mestre Ângelo vale por um cartão de visitas para quem não conheça o interior de uma penitenciária. Inicia com um brinde ao pensamento filosófico sobre a segunda sentença a que os transgressores são relegados atrás das grades, a sentença do esquecimento; adverte-nos em seguida que as oportunidades de queda e soerguimento são reais e iguais para todos, antes e depois desta vida; lembra aos internos e a todos nós que não é um muro alto que divide os “certos” e os “errados” na caminhada terrena; enfim, entre as cruzes comuns a todos nós, descreve o ambiente e os circunstantes dentro de um presídio, as mesas de jogos dos reeducandos desfrutando a sombra da mesma mangueira que servia de palco ao Coral e aos visitantes do Grupo Fraterno Espírita; bem próximo também à figura do barbeiro que aproveita uma antiga cabine de fibra de vidro emprestada da PM para cortar o cabelo dos reeducandos; refere-se aos prisioneiros que parecem caminhar sem rumo pelo pátio do presídio, aos olhares furtivos de alguns deles sobre o inusitado acontecimento e aos que ligavam a escuta na música atrás das janelas gradeadas e muito mais.
Confiram essa delícia de show sob a batuta de um mestre da música e gigante de coração.“Para muitos, uma unidade prisional não passa de um imenso reservatório onde se despejam todos aqueles que, por uma infinidade de razões – da premeditação ao acaso infeliz – transgridem as leis que ordenam a vida em sociedade. Levada a termo a sentença, o mundo mergulha de volta no cotidiano, condenando os transgressores uma segunda vez, agora, ao esquecimento. Este abandono é responsável pela ideia de que “lá dentro, eles aprendem tudo de ruim que não aprenderam aqui fora”.
A conduta futura de um reeducando no sistema prisional, teoricamente, seria sua própria responsabilidade. Afinal, como espíritas, lidamos todos os dias com os já familiares conceitos de “livre- arbítrio” e “expiação e provas” em face da dor alheia. Entretanto, a própria doutrina nos esclarece que, antes e depois desta existência, a vida é uma realidade, e as oportunidades de queda são tão frequentes quanto as de soerguimento.
Portanto, um interno a quem são oferecidas novas escolhas adquire outros referenciais que possibilitam um olhar diferenciado sobre sua condição atual. Mesmo em face da realidade cruel de um presídio, uma réstia de claridade pode se infiltrar na escuridão: é a esperança.
Na tarde ensolarada do último dia 8, sábado, o Coral Vozes da Terra foi à penitenciária (antigo Cepaigo) para uma visita fraterna. Como a música é nossa ferramenta de trabalho na messe do Cristo, foi assim – cantando – que tentamos lembrar aos internos, e a nós mesmos, que não é um muro alto que divide os “certos” e os “errados”; que as cruzes variam de pessoa para pessoa, e que ninguém pode saber ao certo se já sofreu ou se sofrerá o que, hoje, aflige a outrem. Sob modesto mangueiral, no chão batido, castigado pelos longos anos de um palmilhar sem conta, a música era lançada no ar e os olhares dos ouvintes assumiam trajetórias diversas. Alguns miravam nosso grupo fixamente, extasiados, ou com a música, ou com a letra, ou simplesmente por presenciar algo novo em sua triste rotina. Outros olhavam o céu, o vazio, perdidos em pensamentos que só o Pai maior conhece. Outros, ainda, abaixavam os olhos até o chão, talvez abatidos em face de si mesmos. Poucos metros além do círculo de internos e do coral, tinha início uma realidade diversa. Numa cabine improvisada – pareceu uma daquelas antigas da PM, em fibra de vidro –, um voluntário cortava o cabelo a um rapaz. Mais além, em duas mesas, também improvisadas, alguns jogavam cartas. Outros circulavam, sem destino certo, ou formavam pequenos grupos. Uma floresta de varais abarrotados de roupas e cobertores resistia ao vento e à poeira. Na janela gradeada de uma ala próxima, um interno virava a cabeça para ouvir melhor. Vez por outra, alguém olhava de longe, mas logo perdia o interesse. Aplausos animados! Uma ilha de consolação em águas profundas.
Próxima parada: um pequeno galpão coberto, entre os pavilhões. No pátio cimentado, colchões espalhavam-se, alguns com seus usuários em cima cochilando à sombra do edifício. Numa parede, um tanque servia de lavanderia. Um moço entrava e saía do prédio com uma lata d’água: dia de faxina no seu cantinho de mundo. O coral cantou sob o coberto, o violão ponteou. Esperança, amor, confiança, alegria. Perdoar “setenta vezes sete, sem contar”. Nada de palmas, desta vez.
A última cantoria foi num salão usado por uma igreja evangélica. As regras de cá não se aplicam lá: o pastor cede de bom grado o espaço para o trabalho espírita! Fomos avisados de que um amigo dos internos presentes, o Paulinho, já doente há muito, havia partido para o plano maior. Na hora, contaram que outro companheiro, o Cleber, havia desencarnado naquele mesmo dia. A razão? Ninguém perguntou. Dedicamos aos dois a música Maria, e falamos do olhar doce da mãe de Jesus, de seu manto azul cobrindo os necessitados. Emoção. No fim, colocamos o coral em duas filas laterais, envolvendo a pequena plateia, e pedimos a todos, inclusive aos cantores, que fechassem os olhos e falassem consigo mesmos durante o canto do Pai Nosso. Despedidas. O pastor, homem pequeno e de olhar franco, nos agradeceu efusivamente, visivelmente emocionado. O coral é convidado pela equipe a fazer a entrega dos “kits dia dos pais”. Sorrisos, apertos de mão e uma breve palavra com os internos. Espanto: eles são gente! E falam de família, filhos! Mas, não estão no presídio?! No estacionamento, a prece de encerramento, a troca de impressões e a certeza do poder libertador da música. A consciência de nossa responsabilidade em levar a música-consolação, não apenas para os encarnados, mas para a multidão de irmãos desencarnados que ainda sofrem sem se permitir o auxílio do Alto. Trabalhemos, sempre, onde quer que nos leve o sopro do Divino Mestre.
Francisco de Assis Alencar é CEL PM R http://pmvida.blogspot.com/ Ângelo Dias é Doutor em música pela University of Oregon (USA) e Professor de Canto e Regência na Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás
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